Museu Virtual do Vale do Mucuri

A ESCRAVIDÃO NO MUCURI

A fotografia se refere à Fazenda Monte Cristo, já demolida, mas que se localizava a 10km de Teófilo Otoni, em direção à Turma 37.

APRESENTAÇÃO

Até o início do século XXI, havia uma recusa em reconhecer a existência da escravidão no Vale do Mucuri. A literatura sobre a história regional procurou incorporar esse território como sendo colonizado por alemães, uma “Europa encravada nos trópicos”, invisibilizando os grupos que realmente foram responsáveis pela formação local. Se houve a composição do imigrante europeu, a população local foi majoritariamente indígena e afrodescendente. A documentação apresentada nessa sala tem o objetivo de resgatar parte dessa memória da população negra, a Escravidão no Mucuri. São cartas de liberdade, inventários e testamentos. À esquerda, o documento em sua escrita original seguido de sua transcrição. Do lado direito, alguns resultados de pesquisa sobre a escravidão no Vale do Mucuri.

CARTA DE LIBERDADE I

Transcrição: O documento é uma carta de liberdade conseguida pelo escravizado de nome Hermenegildo em 04 de junho de 1883.

"Concedo liberdade, digo, pela presente carta, liberdade ao meu escravo Hermenegildo, de idade de cinquenta anos mais ou menos, mediante a quantia de seiscentos mil réis, em dinheiro corrente, que recebi ao passar esta; podendo d'ora em diante gozar de sua plena liberdade como se livre nascesse [...] Philadelphia vinte e quatro de maio de mil oitocentos e oitenta e três" Leonardo Esteves Ottoni.

Informação: Conceder liberdade ao escravizado tinha diversos sentidos. Tanto poderia ser vinda por pessoas que já se sensibilizavam com a escravidão, como ter ganhos com a alforria. Um escravizado com cinquenta anos de idade já não era mais uma força de trabalho em sua plena atividade. Quando a Hermenegildo foi liberto, faltavam cinco anos para a abolição.

CARTA DE LIBERDADE II

Transcrição: O documento é uma carta de liberdade conseguida pelo escravizado de nome Egydio em 14 de março de 1882.

"Carta de liberdade conferida ao escravo Egydio, por seu senhor Custodio de Araujo Fonseca, na forma abaixo

Dou liberdade ao meu escravo Egydio, cabra, idade de vinte quatro anos, pelos bons serviços prestados à minha finada mãe, e por ter d'ella recebido a quantia de um conto de réis, que [...] por herança da finada."

Informação: Pelo censo de 1872-73, a quantidade de escravizados no Mucuri era de 605, em uma população de 6.864 pessoas. Havia 455 nascidos no Brasil e 155 africanos. O número maior de ocupação era na lavoura, com 98 homens e 49 mulheres, seguidos por criados e jornaleiros com 58 homens e 46 mulheres. Mas as atividades se estendiam em metais, madeiras, costureiras e tecidos.

INVENTÁRIO I

Transcrição: O documento é um inventário de bens de D. Rozenda Maria d’Oliveira datado de 13 de agosto de 1883.

“Uma escrava de nome sophia, de quinze anos que os lavrados achavam valer a quantia de quatrocentos mil réis. Uma escrava de nome jacintha com quarenta anos de idade que o lavrados achavam valer a quantia de trezentos mil réis [. . .] um moleque de nome antônio crioulo com dezesseis anos que os lavrados acharam valer a quantia de quinhentos mil réis [. . .] um escravo de nome adão idade de trinta anos as quais os lavrados acharam valer a quantia de oitocentos mil réis” 

Informação: O escravizado era considerado como mercadoria e seu valor variava de acordo com a sua importância como mão de obra. O homem tinha o dobro do valor da mulher. Idosos e doentes tinham o valor diminuído. Mas, de modo geral, o escravizado no período da ocupação do mucuri era muito caro, pois, o tráfico do escravizado havia se encerrado em 1850.  

INVENTÁRIO II

Transcrição: O documento é um inventário de bens de Domingos Francisco das Neves datado de 26 de abril de 1881.

“Escrava de nome Maria, matriculada na coletoria da cidade de Minas Novas, em onze de setembro de mil oitocentos e setenta e seis, avaliada por setecentos mil réis” 

Informação: A quase totalidade de escravizados que chegaram ao Vale do Mucuri vinham do Vale do Jequitinhonha e norte de Minas. Aqui se instalaram grandes fazendas agrícolas, sendo algumas com mais de cem escravizados. Mas a grande maioria era de proprietários com um número de escravizados abaixo de dez.   

INVENTÁRIO III

Transcrição: O documento é um inventário de bens de Francisco Alves de Faria 18 de fevereiro de 1880.

“Uma escrava de nome Lucianna, crioula, de idade de quarenta e sete anos, muito doente, avaliada em [. . .] cem mil réis. Uma escrava de nome Maria, crioula, idade de trinta e um anos, avaliada por seiscentos mil réis. Uma escrava de nome Anna, crioula, de idade de dezesseis anos, avaliada em seisentos mil reis. Uma escrava de nome Francisca, crioula, de treze anos, avaliada em seiscentos mil réis. Um escravo de nome Manoel, onze anos, doente, sofre das onrinas, avaliado em seiscentos mil réis” 

Informação: Os escravizados nascidos no Brasil tinham no registro a designação crioulo/crioula, pardo/parda, cabra e mulato/mulata. O termo mina, angola, preto/preta ou de nação eram nascidos na África. Mais do que simplesmente classificar a pigmentação da pele, a cor revelava uma condição social. Ingênuas tanto pode ser a designação de criança abaixo de sete anos quanto aos filhos ou às filhas de mães após a lei do ventre livre. No Mucuri, se usou o termo misto, que poderia designar filhos de escravos com indígenas como de imigrante europeu.  

INVENTÁRIO IV

Transcrição: O documento é um inventário de bens de Altino Soares da Costa datado de 30 de abril de 1884.

“Deixo a Luzia, escrava de Dona Francisca José Coelho a quantia de duzentos mil réis, destinados para sua liberdade; e a Josepha, ingênua, filha de Roza, escrava de João Quintiliano Alves Caminhas, deixo a quantia precisa para sua total liberdade, o que será feito por meu filho, segundo a minha recomendação a ele feita”. 

Informação: As meninas escravizadas tinham maior possibidade de serem libertas, pois os meninos representavam maior prejuízo financeiro. Escravizadas procuravam maior aproximação doméstica, abrindo maior comunicação entre elas e suas senhoras, sendo uma forma de conseguir a alforria.  

INVENTÁRIO V

Transcrição: O documento é um inventário de bens de Galdêncio de Araújo Sá datado de 16 de março de 1882.

“Mais veio ela, inventariante, descrever ao presente inventário um escravo de nome Clementino, cabra, de idade de trinta e quatro anos, solteiro, matriculado sob o número trezentos e trinta e nove da relação nominal, e sob o número mil oitocentos e dez do número de ordem, no qual os lavrados não dar valor por se achar o dito escravo fugido”.  

Informação: O único registro da existência de quilombos (no sentido tradicional de local habitado por escravizados fugidos) no Mucuri é do relato de Joaquim Mulato, em um processo de 1883, que informa haver escravizados fugidos vivendo com indígenas. Mas foram diversas formas de resistência, como os homicídios contra os feitores e proprietários. Na Fazenda Monte Cristo, por exemplo, em 1882, ocorreram dois assassinatos contra feitores cometidos por escravizados no período de um ano. 

INVENTÁRIO VI

Transcrição: O documento é um testamento de Galdêncio de Araújo Sá datado 15 de março de 1882.

“2º herdeiro 

Haverá para seu pagamento uma escrava de nome Carolina, avaliada por setecentos mil réis.

3º herdeiro 

Haverá para seu pagamento uma escrava de nome Leolina avaliada por seiscentos mil réis. Haverá mais um escravo de nome Manoel avaliado por sessenta mil réis. 

4º herdeiro 

Haverá para seu pagamento uma escrava de nome Eva avaliada por seiscentos mil réis.  

Informação: A estrutura escravista usava diversos mecanismos para coisificar e inferiorizar o escravizado. De modo geral era dado apenas o primeiro nome como identificação, acrescido de algum traço físicoe sua idade. O objetivo da sociedade branca escravista era arrancar qualquer tentativa de inserção social, desvinculando as relações familiares do escravizado e enfatizando sua condição de mercadoria. 

INVENTÁRIO VII

Transcrição: O documento é uma partilha amigável entre herdeiros de Ana Gonçalves Senna de 10 de maio de 1884.

“Haverá para seu pagamento um escravo, crioulo, idade de dezesseis anos que à inventariante estava matriculado na coletoria de minas novas e avaliado por setecentos mil réis” 

Informação: No mucuri, as crianças escravizadas começavam a trabalhar a partir dos dez anos, não frequentavam a escola. Pelo censo de 1872/73, todos os 605 escravizados, adultos ou não, eram analfabetos. 

INVENTÁRIO VIII

Transcrição: O documento é um inventário de Marcelino Domingues, de 08 de novembro de 1866.

“Deu-lhe o inventariante ao presente inventário uma escrava por nome Rosa, dezessete anos, avaliada pelos lavrados pela quantia de quatrocentos mil réis, Geraldo, vinte e cinco anos, avaliado pelos lavrados pela quantia de oitocentos mil réis”. 

Informação: As homenagens a homens e mulheres que escravizaram africanos e seus descendentes estão representados de diversas formas em Teófilo Otoni. A começar pelo nome da cidade. O fundador usou a mão de obra escravizada na Companhia do Mucuri e também na abertura da Estrada Santa Clara. Além dele, Manuel Esteves Ottoni, Capitão Leonardo e Ana Amália tiveram em suas propriedades um número elevado de escravizados.